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A (in) aplicabilidade do crime de fraude a contrato ou licitação no Sistema de Registro de Preços

18.02.2025 categorias Sem categoria

A (in) aplicabilidade do crime de fraude a contrato ou licitação no Sistema de Registro de Preços

O Sistema de Registro de Preços (SRP) representa um importante mecanismo dentro das contratações públicas brasileiras, proporcionando maior eficiência, facilidade e transparência na aquisição de bens e serviços pela Administração Pública. Imementado com a finalidade de otimizar os processos licitatórios e evitar a necessidade de múltiplas licitações para demandas recorrentes, o SRP tem sido amplamente utilizado por órgãos públicos de diferentes esferas governamentais. Entretanto, a sua aplicação levanta uma série de questionamentos, principalmente no que se refere à sua compatibilidade com a tipificação penal de fraude na licitação prevista no artigo 337-L do Código Penal.

A evolução normativa do SRP demonstra a preocupação do legislador em tornar o processo mais célere e eficiente, ao mesmo tempo em que busca resguardar os princípios da moralidade e economicidade na gestão dos recursos públicos. Com a revogação da Lei nº 8.666/1993 e a entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021, novas diretrizes foram disposições para regulamentos o SRP, trazendo mudanças que impactam diretamente na forma como as contratações são realizadas e fiscalizadas.

Diante desse cenário, a presente pesquisa busca analisar a (in)aplicabilidade do crime de fraude à licitação no contexto do SRP, considerando os princípios da legalidade e da tipicidade penal. O principal problema de pesquisa consiste em avaliar se a utilização indevida do SRP pode ser enquadrada como fraude à licitação ou se, devido à sua natureza específica, não há como enquadrá-lo dentro do tipo penal previsto no artigo 337-L do Código Penal. A hipótese levantada sugere que um ato de registro de preços não possui as características permitidas para ser considerado um contrato administrativo típico, o que inviabilizaria sua equiparação aos instrumentos formais anteriores

Para responder a esse questionamento, a metodologia adotada será a pesquisa bibliográfica e documental, baseada em legislações, doutrinas especializadas, inquérito dos tribunais e decisões do Tribunal de Contas da União (TCU). Uma análise comparativa entre a antiga e a nova legislação de licitações também será fundamental para compreender as alterações normativas que afetam a aplicabilidade da norma penal

A relevância deste estudo reside na necessidade de esclarecer a distinção entre os instrumentos jurídicos utilizados nas licitações e sua implicação no âmbito penal, contribuindo para uma maior segurança jurídica na interpretação das normas. Além disso, a pesquisa busca fornecer subsídios para operadores de Direito, gestores públicos e estudiosos do tema, auxiliando na compreensão dos limites da responsabilidade penal no contexto das contratações públicas.

Dessa forma, este trabalho está estruturado em capítulos que abordam, inicialmente, a contextualização do Sistema de Registro de Preços, seguida pela análise das disposições da Lei nº 14.133/2021 e do artigo 337-L do Código Penal. Em seguida, serão considerados os princípios da legalidade e da tipicidade penal, bem como sua aplicação à proposta temática. Por fim, serão apresentados os resultados da pesquisa e as conclusões extraídas da análise dos dados levantados

Contextualização do Sistema de Registro de Preços

O Sistema de Registro de Preços (SRP) é um procedimento auxiliar utilizado para aquisição de bens e serviços de uso comum por órgãos, criado com o objetivo de aumentar a eficiência nas compras públicas, otimizando suas necessidades do dia a dia de forma menos complexa.

A criação do Sistema de Registro de Preços (SRP) inicialmente com o Decreto nº 3.931/2001 regulamentando o artigo 15 da Lei 8.666/1993 o qual permaneceu em vigência até 23 de janeiro de 2013 quando houve a edição do Decreto 7.892/2013, ainda na vigência da Lei 8.666/1993, onde ambos permaneceram em vigência até a 30 de dezembro de 2023 com a publicação da Nova Lei de Licitações – Lei 14.133/2021 que trouxe toda a uma nova legislação a ser regulamentada e no ano de 2023 publicou-se o Decreto 11.462/2023 que regulamenta os art. 82 a art. 86 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para dispor sobre o sistema de registro de preços para a contratação de bens e serviços, inclusive obras e serviços de engenharia, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.

O sistema de registro de preços (SRP) é uma ferramenta auxiliar bastante conhecida e utilizada, prevista inicialmente no antigo art. 15, §§ 1º a 8º, da Lei nº 8.666/93 e no art. 32 da Lei nº 12.462/11 (RDC), ambos já revogados. E com a Lei 14.133/21 houve um novo marco nas licitações e contratos, essa ferramenta é mantida para aquisições, com algumas alterações para alinhar o processo às boas práticas e à jurisprudência das cortes de contas, especialmente a federal, com o objetivo de proporcionar mais agilidade aos entes públicos. Embora o dispositivo seja autoaplicável, regulamentos em nível federal, estadual ou municipal podem estabelecer certas restrições.

O novo regulamento busca aprimorar as regras que regem o sistema de registro, incluindo, por exemplo, orientações mais claras sobre a adesão de órgãos que não participaram do processo inicial. Dessa forma, a atuação administrativa passa a ser mais coerente com as orientações do Tribunal de Contas da União (TCU), preservando a essência do procedimento licitatório e mantendo o foco em sua finalidade.

O sistema de registro de preços permite diversas contratações simultâneas ou sucessivas, eliminando a necessidade de uma nova licitação para cada contratação específica. Esse modelo pode atender um ou vários órgãos da Administração Pública, sendo especialmente útil para a aquisição de bens ou serviços recorrentes, nos casos em que não se conhece a quantidade exata a ser adquirida, ou quando há previsão de entregas parceladas. O objetivo é simplificar contratações e evitar a formação de estoques desnecessários, que geram custos elevados e o risco de deterioração dos itens, como consta no art. 81, § 3º, inciso II, da Lei 14.133/21.

Em resumo, o registro de preços formaliza a intenção de fornecimento de bens ou serviços, inclusive de engenharia, por parte de fornecedores, permitindo a Administração Pública dar preferência à proposta mais vantajosa e, ao mesmo tempo, exigindo que o fornecedor cumpra as condições de quantidade, preço e outros aspectos estabelecidos no edital.

O SRP se mostra um recurso eficaz para a aquisição de produtos e contratação de serviços pela administração pública, viabilizando a participação de empresas de menor porte por meio do fornecimento parcelado ao longo da validade da ata de registro de preços. O PL, nos arts. 81 a 85, ajusta o sistema de registro de preços às necessidades atuais, superando limitações das legislações anteriores

Por fim, o SRP contribui para o controle e fiscalização dos gastos públicos. Como todas as contratações são registradas em uma ata específica, é possível acompanhar de forma mais precisa as despesas realizadas, evitando desperdícios e gastos desnecessários. Além disso, o sistema permite o monitoramento da qualidade dos produtos e serviços adquiridos, garantindo que as entregas sejam feitas de acordo com o estabelecido no processo de licitação.

Em resumo, o Sistema de Registro de Preços é uma ferramenta fundamental para a administração pública, proporcionando economia, agilidade e transparência nas contratações. Por meio dele, é possível obter as melhores condições de compra, selecionar os fornecedores mais competitivos e garantir o controle dos gastos públicos. Assim, o SRP contribui para uma gestão eficiente e responsável, beneficiando tanto a Administração Pública quanto a sociedade como um todo.

 

Problema antigo com roupagem nova

O artigo de fraude a contrato ou licitação já teve julgados e interpretações restritivas devido a sua redação precária sem a devida “conexão” com o direito administrativo, inicialmente previsto no artigo 96 da Lei 8.666/93 e atualmente no artigo 337-L do Código Penal.

Artigo 96 da Lei 8.666/93

O artigo 96 da Lei 8.666/93 possuía a seguinte redação:

Art. 96. Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente:

I – elevando arbitrariamente os preços;

II – vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada;

III – entregando uma mercadoria por outra;

IV – alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida;

V – tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato:

Pena – detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Quando referia-se ao sujeito passivo do tipo penal, limitava-se, portanto, à “Fazenda Pública” o que causava divergências, pois a expressão restringia a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, por consequência sua aplicação aos contratos realizados pela Administração Pública direta, conforme previsão do artigo 1ª, p. Único da Lei 8.666/93[1].

Também, a limitação da aplicabilidade aos contratos que envolviam “aquisição ou venda de bens ou mercadorias” ou seja, excluia-se por exemplo contratos de obras ou contratação de serviços, conforme entendimento da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DO RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. 2. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE PRESENTE. 3. ART. 90 DA LEI N. 8.666/1993. PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. FRAUDE AO CARÁTER COMPETITIVO. AUSÊNCIA DE DESCRIÇÃO DA FRAUDE. CARÁTER COMPETITIVO PRESERVADO. NARRATIVA DE FATOS POSTERIORES AO CONTRATO. 4. DESCRIÇÃO DE IRREGULARIDADES. NARRATIVA QUE NÃO REVELA, POR SI SÓ, A PRÁTICA DE CRIMES. 5. ART. 96, V, DA LEI N. 8.666/1993. FRAUDE NA AQUISIÇÃO DE BENS OU MERCADORIAS. IMPUTAÇÃO DE FRAUDE PARA CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS. CONDUTA NÃO ABRANGIDA. PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE PENAL. 6. ART. 1º, III, DO DL 201/1967. DESVIO DE VERBA PÚBLICA. PAGAMENTO DE CONTRATO SUPERFATURADO. DOLO ESPECÍFICO NÃO DESCRITO. 7. ELEMENTARES DOS TIPOS PENAIS NÃO NARRADAS. DENÚNCIA DEFICIENTE. PREJUÍZO À AMPLA DEFESA. 8. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA TRANCAR A AÇÃO PENAL POR INÉPCIA DA DENÚNCIA

  1. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. O trancamento da ação penal somente é possível na via estreita do habeas corpus em caráter excepcional, quando se comprovar, de plano, a inépcia da denúncia, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito. 3. Para configurar o tipo do art. 90 da Lei n. 8.666/1993, necessário ficar demonstrada a quebra do caráter competitivo entre os licitantes interessados em contratar, ocasionada pelo mero ajuste, combinação ou outro expediente apto a frustrar ou fraudar o procedimento licitatório. Da leitura da denúncia, não se observa em que consistiria eventual fraude perpetrada pelos pacientes, ainda que em concurso, com o objetivo de frustrar o caráter competitivo do procedimento licitatório, uma vez que a licitação, na modalidade concorrência pública, efetivamente ocorreu, participando dela 5 concorrentes. Ademais, não se verifica eventual ajuste prévio entre as concorrentes para frustrar o caráter competitivo da licitação, constando da inicial acusatória apenas fatos posteriores à contratação, os quais não indicam qualquer irregularidade prévia à própria licitação, mas meras conjecturas, que não podem subsidiar uma imputação penal.4. Relevante assentar que os tipos penais trazidos na Lei de Licitações não têm a finalidade de criminalizar o mero descumprimento de formalidades, mas sim o descumprimento com a intenção de violar os princípios cardeais da administração pública. Com efeito, “irregularidades pontuais são inerentes à burocracia estatal e não devem, por si só, gerar criminalização de condutas, se não projetam ofensa consistente tipicidade material _ ao bem jurídico tutelado, no caso, ao procedimento licitatório”. (Inq 3962/DF, rel. Min ROSA WEBER, julgamento em 20/2/2018). 5. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no mesmo sentido de que “o art. 96 da Lei n. 8.666/1993 apresenta hipóteses estreitas de penalidade, entre as quais não se encontra a fraude na licitação para fins de contratação de serviços. O tipo penal deveria prever expressamente a conduta de contratação de serviços fraudulentos para que fosse possível a condenação do réu, uma vez que o Direito Penal deve obediência ao princípio da taxatividade, não podendo haver interpretação extensiva em prejuízo do réu” (REsp n. 1.571.527/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, julgado em 6/10/2016, DJe 25/10/2016). 6. Prevalece no Superior Tribunal de Justiça o entendimento no sentido de que é indispensável estar devidamente descrito o dolo específico de acarretar prejuízo ao erário, para ficar configurado o crime do art. 1º, inciso III, do Decreto-Lei n. 201/1967. Contudo, não há descrição do dolo específico do ex-prefeito nem do secretário de obras de desviar ou aplicar indevidamente rendas ou verbas públicas, mas mera afirmação de superfaturamento e de indícios de favorecimento, os quais nem ao menos são descritos na inicial acusatória. 7. A denúncia, apesar de narrar diversas irregularidades, é deficiente, não descrevendo todos os elementos necessários à responsabilização penal dos pacientes. Com efeito, embora o réu se defenda dos fatos e não da capitulação legal a ele atribuída pelo Ministério Público, mister a adequada compreensão da imputação, com a descrição de todos os elementos do tipo penal, sob pena de a defesa ter que se defender de conduta que nem ao menos preenche adequadamente a tipicidade penal. Anoto que não se está a afirmar que as condutas imputadas são atípicas, mas sim que o Ministério Público não se desincumbiu de narrar todos as elementares do tipos penais, o que dificulta, sobremaneira, a ampla defesa. 8. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para trancar a Ação Penal n. 0003267-38.2012.4.03.0000, haja vista a inépcia da inicial acusatória, sem prejuízo de oferecimento de nova denúncia, em obediência à lei processual. Encontrando-se os demais codenunciados na mesma situação processual dos pacientes, estendo a eles os efeitos da presente decisão, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal. HABEAS CORPUS Nº 485.791 – SP (2018/0342416-5) – RELATOR : MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA

No mesmo sentido:

RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. FRAUDE EM LICITAÇÃO. RT. 96 DA LEI N. 8.666/1993. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. CONDUTA NÃO PREVISTA NO TIPO PENAL. PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA EM PREJUÍZO DO RÉU. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. O art. 96 da Lei n. 8.666/1993 apresenta hipóteses estreitas de penalidade, entre as quais não se encontra a fraude na licitação para fins de contratação de serviços. 2. Considerando-se que o Direito Penal deve obediência ao princípio da taxatividade, não pode haver interpretação extensiva de determinado tipo penal em prejuízo do réu. 3. Recurso especial desprovido. (REsp 1407255/SC, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 21/08/2018.

Também no Supremo Tribunal Federal:

AÇÃO PENAL. QUESTÃO DE ORDEM. SENADOR ACUSADO POR FATOS OCORRIDOS DURANTE O EXERCÍCIO DE MANDATO DE PREFEITO MUNICIPAL. CRIMES PREVISTOS NO ART. 1º DO DECRETO-LEI 201/1967 E NA LEI 8.666/1993. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA FORMULADO NA ORIGEM. ACOLHIMENTO, EM PARTE, COM RELAÇÃO À SEGUNDA CONDUTA.1. Em se tratando de ação penal oriunda do primeiro grau de jurisdição, o regular prosseguimento do feito reclama a adequação dos ritos procedimentais, com o exame do pedido de absolvição sumária formulado na defesa escrita. Precedente: AP 630 AgR/MG, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, Dje 22.3.2012.2. Em razão do princípio da taxatividade (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal), a conduta de quem, em tese, frauda licitação ou contrato dela decorrente, cujo objeto é a contratação de obras e serviços, não se enquadra no art. 96, I, da Lei 8.666/93, pois esse tipo penal contempla apenas licitação ou contrato que tem por objeto aquisição ou venda de bens e mercadorias.3. À míngua de quaisquer das hipóteses legais enumeradas no art. 397 do Código de Processo Penal, remanesce íntegra a acusação quanto ao delito previsto no art. 1º, I, do Decreto-Lei 201/1967.4. Questão de ordem, em parte, acolhida, para absolver sumariamente o parlamentar denunciado da prática do crime tipificado no art. 96, I e IV, da Lei 8.666/1993, nos termos do art. 397, III, do Código de Processo Penal, prosseguindo-se a ação penal no tocante ao delito previsto no art. 1º, I, do Decreto-Lei 201/1967. (AP 991 QO, Relator(a):  Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 28/11/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-289 DIVULG 14-12-2017 PUBLIC 15-12-2017)

O artigo 96 da Lei 8.666/93, revogado pela Lei 14.133/2021, apresentava uma formulação que limitava sua aplicação a determinados tipos de fraudes em licitações e contratos administrativos. A exigência de que a fraude causasse prejuízo à Fazenda Pública restringia a interpretação do dispositivo à Administração Pública direta, excluindo a Administração indireta e outras entidades que, mesmo administrando recursos públicos, não se enquadravam na definição estrita de Fazenda Pública.

Além disso, o tipo penal previa a punição apenas para fraudes relacionadas à aquisição ou venda de bens e mercadorias, deixando de fora fraudes em contratos de obras e serviços. Essa restrição levou a uma interpretação restritiva do dispositivo pelo Poder Judiciário, conforme se verifica em diversas decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência firmou entendimento no sentido de que a tipificação penal deveria respeitar o princípio da taxatividade, impedindo a aplicação extensiva do artigo 96 para casos não expressamente previstos em sua redação original.

Dessa forma, a revogação do artigo 96 pela Lei 14.133/2021 pode ser interpretada como uma tentativa do legislador de corrigir as lacunas e dificuldades interpretativas da norma anterior, promovendo uma revisão no regime sancionador das fraudes em licitações e contratos administrativos. A nova legislação busca uma abordagem mais abrangente e coerente na prevenção e repressão de condutas fraudulentas, garantindo maior segurança jurídica tanto para os administradores públicos quanto para os particulares envolvidos nos procedimentos licitatórios.

 Artigo 337-L do Código Penal – Lei 14.133/21

O artigo 337-L do Código Penal, trazido pela Lei 14.133/21, anteriormente previsto no artigo 96 da revogada Lei 8.666/93, criminaliza fraudes ocorridas em licitações ou em contratos, elencadas em 05 (cinco) incisos em que tragam prejuízo para a Administração Pública, vejamos o tipo penal completo:

Fraude em licitação ou contrato

Art. 337-L. Fraudar, em prejuízo da Administração Pública, licitação ou contrato dela decorrente, mediante:

I – entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas no edital ou nos instrumentos contratuais;

II – fornecimento, como verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada, deteriorada, inservível para consumo ou com prazo de validade vencido;

III – entrega de uma mercadoria por outra;

IV – alteração da substância, qualidade ou quantidade da mercadoria ou do serviço fornecido;

V – qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração Pública a proposta ou a execução do contrato:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.

Quando fazemos a leitura do final caput do tipo penal, temos a expressão “Administração Pública”[2], ou seja, abrange-se todos os órgãos integrantes da União, Estados e Municípios, respectivas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas, de direito público e privado, sob o contexto de compras públicas realizadas através de licitação.

O artigo 337-L do Código Penal, introduzido pela Lei 14.133/2021, substituiu o artigo 96 da revogada Lei 8.666/93, ampliando a abrangência da tipificação penal das fraudes em licitações e contratos administrativos. A nova redação não apenas manteve elementos essenciais do tipo penal anterior, mas também expandiu seu escopo ao englobar tanto a aquisição de bens quanto a prestação de serviços, mitigando uma das principais limitações da norma revogada.

A substituição da expressão “Fazenda Pública” por “Administração Pública” na nova tipificação penal garantiu uma aplicação mais abrangente do dispositivo, alcançando todos os entes federativos, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas. Essa ampliação supre uma deficiência interpretativa da norma anterior, alinhando-se ao entendimento de que o combate às fraudes licitatórias deve abranger toda a Administração Pública, independentemente da natureza do órgão ou entidade envolvida.

Dessa forma, a nova tipificação penal reflete uma evolução normativa ao buscar maior efetividade no combate às fraudes licitatórias, garantindo maior segurança jurídica e proteção ao erário. A pena mais severa atribuída ao crime também demonstra um endurecimento legislativo com o intuito de desestimular condutas fraudulentas e assegurar a lisura dos processos licitatórios e contratuais no âmbito público.

Sistema de Registro de Preços: Instrumento auxiliar

Lei 14.133/21 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos

No capítulo III, no artigo 6º da Lei 14.133/21 traz as definições de todas as expressões utilizadas, sendo importante destacar o que é o sistema de registro de preços e qual documento gerado ao utilizá-lo, vejamos:

Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:

XLV – sistema de registro de preços: conjunto de procedimentos para realização, mediante contratação direta ou licitação nas modalidades pregão ou concorrência, de registro formal de preços relativos a prestação de serviços, a obras e a aquisição e locação de bens para contratações futuras;

XLVI – ata de registro de preços: documento vinculativo e obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, no qual são registrados o objeto, os preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no edital da licitação, no aviso ou instrumento de contratação direta e nas propostas apresentadas;

Os instrumentos auxiliares na contratação pública, previstos no artigo 78 da Lei 14.133/21, têm como objetivo principal facilitar e agilizar os processos de contratação realizados pelo poder público. Esses instrumentos englobam uma série de ferramentas inovadoras e eficientes, tais como credenciamento, pré-qualificação, procedimento de manifestação de interesse, sistema de registro de preços e registro cadastral, vejamos:

Art. 78. São procedimentos auxiliares das licitações e das contratações regidas por esta Lei:

I – credenciamento;

II – pré-qualificação;

III – procedimento de manifestação de interesse;

IV – sistema de registro de preços;

V – registro cadastral.

Uma das alterações mais significativas refere-se à ampliação do escopo de utilização do registro de preços. Agora, além da aquisição de bens, também é permitida a contratação de serviços comuns por meio desse sistema. Isso representa uma grande evolução, pois possibilita uma maior agilidade e eficiência nas contratações públicas, ao mesmo tempo em que garante a transparência e a economia de recursos.

Além disso, a Lei 14.133/21 estabelece regras claras e objetivas para a utilização do registro de preços, promovendo uma gestão mais eficiente e transparente. Entre as principais determinações, destacam-se a necessidade de ampla pesquisa de mercado, a definição de critérios objetivos para seleção dos fornecedores e a elaboração de estudos técnicos prévios, garantindo assim a escolha mais vantajosa para a administração pública.

Decreto 11.462/23 – Regulamentação do Sistema de Registro de Preços

Ao regulamentar o sistema de registro de preços o Decreto também trouxe importantes definições, tais como o que é o SRP bem como qual seu documento obrigacional, vejamos:

Art. 2º  Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

I – sistema de registro de preços -SRP – conjunto de procedimentos para a realização, mediante contratação direta ou licitação nas modalidades pregão ou concorrência, de registro formal de preços relativos à prestação de serviços, às obras e à aquisição e à locação de bens para contratações futuras;

II – ata de registro de preços – documento vinculativo e obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, no qual são registrados o objeto, os preços, os fornecedores, os órgãos ou as entidades participantes e as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no edital da licitação, no aviso ou no instrumento de contratação direta e nas propostas apresentadas;

Ainda, no próprio Decreto no artigo 34 define que a contratação com os fornecedores registrados na ata será formalizada pelo órgão ou pela entidade interessada por meio de instrumento contratual, emissão de nota de empenho de despesa, autorização de compra ou outro instrumento hábil, conforme o disposto no art. 95 da Lei nº 14.133, de 2021.

Ata de Registro de Preços x Contrato Administrativo

O registro de preços é um sistema que, por meio de concorrência ou pregão, seleciona propostas e estabelece preços para futuras contratações. A ata de registro de preços é o documento que oficializa o compromisso do licitante vencedor com o preço e as condições registradas, as quais servirão de base para contratações futuras.

Assim, a ata de registro de preço não deve ser confundida com um contrato. O contrato é o instrumento que formaliza as relações jurídicas e estipula obrigações mútuas entre a Administração e o licitante cujo preço foi registrado. Em outras palavras, o termo contratual é o documento que oficializa os acordos com base na ata de registro de preços.

Portanto, ata de registro de preços e termo de contrato são documentos com propósitos e características distintas, de modo que um não substitui nem se confunde com o outro.

A formalização de contratos com base em atas de registro de preços deve respeitar as exigências da Lei nº 14.133/21. Assim, “O instrumento de contrato é obrigatório, salvo nas seguintes hipóteses, em que a Administração poderá substituí-lo por outro instrumento hábil, como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço, conforme o disposto no art. 95 da Lei nº 14.133/21”, conforme dispõe o art. 34 do Decreto federal nº 11.462/23.

Nesse sentido,

EMENTA:APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS. CONTRATAÇÃO DE EMPRESA ESPECIALIZADA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE LIMPEZA DE FOSSA SÉPTICA. INEXECUÇÃO PARCIAL DO CONTRATO. MULTA. BASE DE CÁLCULO. DIFERENÇA ENTRE O VALOR TOTAL DA REQUISIÇÃO E O EFETIVAMENTE CUMPRIDO. ATA DE REGISTRO DE PREÇO QUE NÃO SE CONFUNDE COM O CONTRATO. REQUISIÇÃO DE FORNECIMENTO PARCIALMENTE CUMPRIDA. APLICAÇÃO SUPLETIVA DO CÓDIGO CIVIL PERMITINDO A REDUÇÃO EQUITATIVA DA MULTA. DANO MORAL COLETIVO AFASTADO. INEXISTÊNCIA DE INJUSTA E INTOLERÁVEL LESÃO AOS MUNÍCIPES. REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. RECURSO PROVIDO. (TJPR – 5ª Câmara Cível – 0015744-57.2019.8.16.0031 – Guarapuava – Rel.: DESEMBARGADOR CARLOS MANSUR ARIDA – J. 17.04.2023)(TJ-PR – APL: 00157445720198160031 Guarapuava 0015744-57.2019.8.16.0031 (Acórdão), Relator: Carlos Mansur Arida, Data de Julgamento: 17/04/2023, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: 20/04/2023)

Por fim, a ata de registro de preços pode se tonar contrato administrativo, mas são diferentes, nesse sentido:

CONSULTA. PREFEITURA MUNICIPAL. PRELIMINAR. IMPRECISÃO. ART. 210-B, IV, DO RITCEMG. ADMISSIBILIDADE PARCIAL. MÉRITO. SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS. REGULARIDADE DE ADESÃO EM ATA NA VIGÊNCIA DE ATA DE IDÊNTICO OBJETO CELEBRADA PELO ENTE. DECRETO FEDERAL N.º 7.892/2013. POSSIBILIDADE DE CONTRATAÇÃO. É lícita a celebração de contrato decorrente de adesão à ata de registro de preços, ainda que concomitantemente à existência de outra ata celebrada pelo órgão ou entidade com o mesmo objeto, desde que justificada a vantajosidade da adesão.(TCE-MG – CONSULTA: 1120108, Relator: CONS. SUBST. HAMILTON COELHO, Data de Julgamento: 12/04/2023)

A ata de registro de preços não é um instrumento contratual, possuindo natureza jurídica própria, conforme já decidido pelo Tribunal de Contas da União desde 2010:

Nesse sentido, o Ministro Augusto Sherman Cavalcanti deixou consignado no Acórdão 3.273/2010-TCU-2ª Câmara: “a ata firma compromissos para futura contratação, ou seja, caso venha a ser concretizado o contrato, há que se obedecer às condições previstas na ata”. E complementou: “a ata de registro de preços impõe compromissos, basicamente, ao fornecedor (e não à Administração Pública), sobretudo em relação aos preços e às condições de entrega. Já o contrato estabelece deveres e direitos tanto ao contratado quanto ao contratante, numa relação de bilateralidade e comutatividade típicas do instituto”.

A ata de registro de preços caracteriza-se como um negócio jurídico em que são acordados entre as partes, Administração e licitante, apenas o objeto licitado e os respectivos preços ofertados. A formalização da ata gera apenas uma expectativa de direito ao signatário, não lhe conferindo nenhum direito subjetivo à contratação.  Acórdão 1285/2015-Plenário | Relator: BENJAMIN ZYMLER ÁREA: Licitação | TEMA: Registro de preços | SUBTEMA: Ata de registro de preços outros indexadores: Natureza jurídica Publicado: Informativo de Licitações e Contratos nº 244 de 17/06/2015 Boletim de Jurisprudência nº 84 de 15/06/2015

O sistema de registro de preços com natureza jurídica própria criando apenas expectativa para a contratação, caso seja necessário para a Administração Pública Por fim, a diferença entre a ata de registro de preços e o contrato é que a ata é um instrumento estimativo que gera a expectativa de contratação, enquanto o contrato formaliza a relação jurídica entre a administração e o licitante:

Por fim, é importante destacar que essas diretrizes também devem ser seguidas nos casos em que o contrato é firmado com base na adesão a atas de registro de preços de outros órgãos ou entidades da Administração.

A Inaplicabilidade do Crime de Fraude no SRP: Atipicidade da conduta

Princípio da Legalidade (Reserva Legal)

O princípio da legalidade é um dos pilares fundamentais do direito penal brasileiro, sendo estabelecido de maneira clara e precisa que não pode existir crime sem a existência de uma lei anterior que defina suas características. Essa importante premissa está devidamente prevista no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

Seguido pelo Código Penal:

Art. 1º – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Ambo os dispositivos constitucionais e legais têm como objetivos primordiais a garantia da segurança jurídica, a proteção dos direitos individuais e a delimitação do poder coercitivo do Estado. Portanto, é necessário ressaltar que a legalidade é um princípio essencial que determina que apenas aquelas condutas que estejam expressamente descritas em lei específica podem ser consideradas crimes, garantindo assim a previsibilidade e a certeza jurídica no ordenamento brasileiro. São esses princípios que asseguram a igualdade de todos perante a lei e evitam que o Estado possa agir arbitrariamente contra os cidadãos. Assim, a legalidade é uma proteção indispensável para a efetivação dos direitos fundamentais e para a manutenção da justiça em uma sociedade democrática e transparente.

Princípio da Tipicidade

O princípio da tipicidade no direito penal brasileiro refere-se à necessidade de que a conduta descrita como crime esteja previamente estabelecida em lei, ou seja, que seja típica e claramente definida. Diz se o crime consumado quando reunir-se todos os elementos descritos no tipo penal:

Art. 14 – Diz-se o crime:

Crime consumado

I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;

Isso significa que o comportamento do agente deve se encaixar perfeitamente na descrição legal do delito, sem margens para dúvidas ou interpretações divergentes. Os fundamentos desse princípio residem na segurança jurídica, na previsibilidade das condutas puníveis e na proteção do cidadão contra a arbitrariedade do Estado. Garantir a tipicidade das condutas criminosas é essencial para preservar a ordem jurídica e assegurar direitos individuais fundamentais, promovendo assim um sistema penal justo e equilibrado.

Além disso, a tipicidade no direito penal também serve como limite ao poder punitivo do Estado, impedindo que ações meramente indesejáveis ou moralmente reprováveis sejam criminalizadas sem uma base legal clara. Dessa forma, evita-se a criação de crimes pelo arbítrio do poder público, assegurando que apenas comportamentos socialmente nocivos e que representem uma verdadeira ofensa aos valores fundamentais sejam punidos.

Nesse sentido, a tipicidade atua como um filtro indispensável para o funcionamento adequado do sistema penal e para garantir a equidade nas decisões judiciais. Ao estabelecer limites claros e objetivos para o que é considerado crime, evita-se a ocorrência de abusos por parte das autoridades, bem como a aplicação desigual da lei. A previsibilidade das condutas puníveis contribui para que os cidadãos conheçam as consequências de seus atos, permitindo que eles decidam conscientemente se querem ou não se envolver em atividades ilícitas.

Por fim, é importante ressaltar que a tipicidade é um princípio essencial para que o sistema penal seja eficaz e legítimo. A clareza das leis penais e o respeito à dignidade humana são pilares necessários para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Portanto, o princípio da tipicidade no direito penal brasileiro é um elemento fundamental na garantia dos direitos individuais e na busca por um sistema de justiça mais justo e equânime.

Relação entre Legalidade e Tipicidade

A relação entre legalidade e tipicidade no direito penal brasileiro é de extrema importância para a adequada compreensão e aplicação das leis vigentes. O princípio fundamental da legalidade, que estabelece que não pode haver crime sem uma lei anterior que o defina, bem como o princípio essencial da tipicidade, que determina que uma conduta só é passível de punição se estiver previamente descrita de forma clara e objetiva na legislação, trabalham conjuntamente visando assegurar a segurança jurídica e a proteção dos direitos individuais assegurados pela Constituição Federal. Portanto, é indispensável compreender a atuação desses relevantes princípios jurídicos, uma vez que eles são fundamentais para um sistema de justiça criminal pautado na equidade, na proporcionalidade e na justa aplicação das normas, garantindo, assim, um ambiente jurídico saudável, imparcial e confiável para todos os cidadãos brasileiros, independentemente de sua posição social ou de sua posição política. É por meio desses princípios que é possível construir uma sociedade democrática e igualitária, onde cada indivíduo tenha seus direitos e liberdades respeitados, ao mesmo tempo em que sejam estabelecidos limites às condutas que possam afetar negativamente a convivência harmoniosa em sociedade. Portanto, a relação entre legalidade e tipicidade no direito penal brasileiro deve ser preservada e fortalecida, a fim de garantir a justiça e a segurança jurídica para todos os envolvidos no sistema de justiça. Somente assim será possível construir um país mais justo, igualitário e respeitoso com os direitos fundamentais de cada indivíduo.

A aplicação prática dos princípios da legalidade e tipicidade no direito penal brasileiro é essencial para assegurar a proteção dos direitos individuais e a garantia de um processo penal justo. A correta aplicação desses princípios orienta a atuação dos operadores do direito, sejam eles juízes, promotores, advogados ou delegados, contribuindo para a efetividade do sistema jurídico. Dessa forma, a compreensão e o correto emprego dos princípios da legalidade e tipicidade em casos concretos são fundamentais para a adequada aplicação do direito penal.

Interpretação In malam partem

A LINDB (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro) Decreto-Lei 4.657/42 diz que na aplicação da lei o juiz decidirá de acordo com a analogia, vejamos:

Art. 4o  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Entretanto, a interpretação in malam partem no Direito Penal refere-se à abordagem desfavorável ao réu durante o processo de interpretação da lei. Isso significa que em caso de dúvida, a interpretação deve ser feita de forma a prejudicar o acusado. Esse tipo de interpretação está fundamentado na presunção de que a lei penal deve ser interpretada de maneira restritiva e desvantajosa para o réu, em conformidade com os princípios do direito penal. Esse enfoque visa garantir a eficácia punitiva do Estado, buscando a proteção da sociedade. A interpretação in malam partem é frequentemente associada à presunção de inocência e ao ônus da prova, sendo essencial para o equilíbrio entre a acusação e a defesa.

O termo in malam partem pode ser traduzido como “contra a parte” e representa a premissa de que a interpretação legal no contexto penal deve ser desfavorável ao acusado. Isso implica que, em situações de ambiguidade ou lacunas na lei, a interpretação in malam partem resultará em uma interpretação restritiva dos direitos do réu. Esse princípio está alinhado com a ideia de que a proteção da sociedade é prioridade no direito penal, buscando garantir a eficácia das normas punitivas. A definição de in malam partem é essencial para compreender a aplicação desse conceito no sistema jurídico, bem como para analisar o impacto dessa abordagem na prática jurídica e nos direitos individuais.

Neste sentido,

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. POLICIAL MILITAR DO DISTRITO FEDERAL. CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO. EFEITOS DA CONDENAÇÃO PENAL. PERDA DO CARGO. ART. 92, I, DO CÓDIGO PENAL. CASSAÇÃO DA REFORMA. ANALOGIA IN MALAM PARTEM. IMPOSSIBILIDADE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO CONHECIDO. SÚMULA 83/STJ. 1. Registre-se, de logo, que o acórdão recorrido foi publicado na vigência do CPC/73; por isso, no exame dos pressupostos de admissibilidade do recurso, será observada a diretriz contida no Enunciado Administrativo n. 2/STJ, aprovado pelo Plenário desta Corte, na Sessão de 9 de março de 2016. 2. Cuida a espécie de recurso especial interposto pelo Distrito Federal contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, que concedeu a segurança pleiteada pelo recorrido, policial militar inativo do referido ente federado, a fim de assegurar-lhe o direito de não ter sua aposentadoria cassada com espeque na regra contida no art. 92, I, do Código Penal, uma vez que tal dispositivo, ao disciplinar os efeitos da condenação, autoriza apenas a perda do cargo, da função pública e do mandato eletivo, nada dispondo sobre cassação de aposentadoria civil ou militar. 3. Nos moldes da jurisprudência desta Corte, “no Direito Penal incriminador, não se admite a analogia in malam partem” (HC 528.851/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 12/5/2020). Nesse mesmo sentido: REsp 1.683.732/SP, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, DJe 3/12/2018. 4. Inexistindo controvérsia sobre o fato de a pretérita atividade do recorrido nas fileiras da Polícia Militar do Distrito Federal não se confundir com o seu posterior status de integrante da reserva remunerada, cumpre afastar a possibilidade de se emprestar interpretação extensiva ou ampliativa ao art. 92, I, do CP para se atingir o militar já reformado, cujo propósito, sem dúvida, ensejaria hipótese de analogia in malam partem, não admitida na seara do Direito Penal. 5. “Atualmente, prevalece nesta Corte a orientação segundo a qual não se admite a cassação da aposentadoria como efeito penal da condenação com base no inciso I do art. 92 do Código Penal, por ausência de previsão expressa na norma penal. Precedentes” ( AgRg no REsp 1.336.980/SC, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, DJe 11/11/2019). Nessa mesma linha, “A previsão legal, no entanto, nada diz a respeito da cassação de aposentadoria do servidor civil, ou da reforma, caso se trate de servidor público militar. Por se tratar de norma penal punitiva, não se pode ampliar o rol de efeitos extrapenais contidos no dispositivo, sob pena de violação ao princípio que proíbe o emprego da interpretação analógica in malam partem, como consectário lógico do princípio da reserva legal, que veda a imposição de penalidade sem previsão legal prévia e expressa” ( AgRg no AREsp 980.297/RN, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJe 23/3/2018). 6. “Não se conhece do Recurso Especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida” (Súmula 83/STJ). 7. Recurso especial do Distrito Federal parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido. (STJ – REsp: 1576159 DF 2015/0324761-6, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 01/12/2020, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/12/2020)

Conclusão

Portanto, ao analisarmos a aplicação do artigo 337-L do Código Penal, fica evidente que a tipificação do crime de fraude em licitação ou contrato não pode ser aplicada ao Sistema de Registro de Preços (SRP). Isso porque um ato de registro de preços não se enquadra nem como licitação propriamente dita, nem como um contrato administrativo, mas sim como um instrumento auxiliar.

Além disso, ao tentar enquadrar condutas relacionadas ao SRP nesse tipo penal, acaba-se violando diretamente os princípios da legalidade e da tipicidade, pilares fundamentais do Direito Penal. Interpretar o registro de preços como um “contrato” para fins penais configuraria uma aplicação em in malam partem, algo vedado pelo ordenamento

Desta forma, pode-se concluir que não há base legal para se aplicar o crime de fraude à licitação ou contrato no contexto do SRP. Qualquer tentativa nesse sentido exige-se uma alteração legislativa específica, de forma a evitar interpretações extensivas que pudessem levar à insegurança jurídica e arbitrariedade na aplicação do Direito Penal.

Referências

BITTENCOURT, Sidney. Novo Sistema de Registro de Preços: comentários ao Decreto n° 11.462. de 31 de março de 2023, que regulamenta os arts. 82 a 86 da Lei n° 14.133, de 1º de abril de 2021 (Nova Lei de Licitações), com a modificação determinada pela Lei n° 14.770, de 22 de dezembro de 2023. Belo Horizonte: Fórum, 2024. 298 p. ISBN 978-65-5518-627-7.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. 2. ed. – São Paulo: Saralva Educação, 2021.

 BRASIL. Decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/d3931htm.htm Acesso em: 15 de janeiro 2024

BRASIL. Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d7892.htm Acesso em: 10 de fevereiro 2024

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1° de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20192022/2021/lei/l1413 3.htm Acesso em 10 janeiro de 2024.

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em: 10 de janeiro de 2024.

PEREIRA, Eduardo Martins. <b>O Registro de Preços na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos</b>. São Paulo: Schiefler Advocacia, 2023. Disponível em: <a href=”https://schiefler.adv.br/o-registro-de-precos-na-nova-lei-de-licitacoes-e-contratos-administrativos/”>https://schiefler.adv.br/o-registro-de-precos-na-nova-lei-de-licitacoes-e-contratos-administrativos/</a> Acesso em: 30 out. 2024

HEINEN, Juliano. Sistema de Registro de Preços na Nova Lei de Licitações. Observatório da Nova Lei de Licitações, 2022. Disponível em: < https://www.novaleilicitacao.com.br/2020/02/12/sistema-de-registro-de

 

[1] Art. 1o  Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Parágrafo único.  Subordinam-se ao regime desta Lei, além dos órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

[2] Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
III – Administração Pública: administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e as fundações por ele instituídas ou mantidas;

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